Em 1992, quando o processo de impeachment do ex-presidente da República Fernando Collor de Mello foi julgado, Sydney Sanches era presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e teve como missão presidir o julgamento de Collor no Senado Federal. Em entrevista exclusiva à Agência Brasil, Sanches destacou poucas semelhanças entre o processo de impeachment de Collor e o que está em curso contra a presidenta da República Dilma Rousseff.
"A única semelhança para os dois são os processos de impeachment. Mas para aí. Tudo o mais é diferente. Collor estava sem apoio na Câmara e no Senado. A autorização da Câmara, o processamento no Senado e a condenação ocorreram com certa facilidade porque a grande maioria da Câmara e do Senado, acima de dois terços, era favorável ao impeachment. No caso de Dilma é diferente. Ela tem ainda o apoio do partido, o PT, de alguns partidos aliados e tem apoio dos movimentos sindicais, sociais e de algumas manifestações contra o impeachment. E não são tão pequenos", afirmou.
Para ele, o processo atual tem embasamento jurídico e não se trata de um golpe. "Não [é golpe]. De forma alguma. É tudo dentro da Constituição", disse o ex-presidente do Supremo.
Segundo ele, houve um crime de responsabilidade, que está previsto na lei do impeachment. “A meu ver, há um crime chamado de crime de responsabilidade que é um ato incompatível com a integridade, a honra ou com o decoro no exercício do cargo. Isso está previsto na lei do impeachment”.
Confira os principais trechos da entrevista concedida pelo ex-ministro do Supremo:
Agência Brasil: Há fundamento jurídico para o processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff, recentemente aprovado e aberto pela Câmara dos Deputados?
Sydney Sanches: Acho que há. A meu ver, há um crime chamado de crime de responsabilidade que é um ato incompatível com a integridade, a honra ou com o decoro no exercício do cargo. Isso está previsto na lei do impeachment. A Constituição estabelece quais são os crimes de responsabilidade e, no final, atribui à lei a função de discriminar cada um desses crimes. E um deles é a falta de decoro no exercício do mandato.
Agência Brasil: Houve falta de decoro da presidenta?
Sanches: Ato incompatível com a honra, a dignidade ou com o decoro no exercício do mandato. E não deixa de ser uma dessas figuras porque, ao final das contas, aquilo foi uma manobra para aparentar uma situação fiscal e financeira e orçamentária do país que não era real.
Agência Brasil: A denúncia está bem fundamentada?
Sanches: Está bem fundamentada. Mas não podemos nos esquecer que, mesmo que houvesse alguma polêmica entre juristas, quem vai resolver é o Senado. E não vai resolver juridicamente, mas vai resolver politicamente porque ele é político, integrado por políticos e necessariamente político porque são vinculados a partidos. O julgamento, embora haja uma denúncia apontando fatos que impedem e correspondam a um crime de responsabilidade, se o fato ocorreu ou não, quem vai examinar é o Senado.
Agência Brasil: A presidenta, então, realmente teria cometido um crime?
Sanches: Um crime de responsabilidade. Às vezes nem a presidente estava suficientemente esclarecida do que estava sendo feito. Mas, para isso, ela tem assessores e quem presta contas é a presidente da República, não os assessores. Não são os ministros, nem a Fazenda, nem qualquer outro. Ela apenas é orientada.
Agência Brasil: Ela [presidenta] então poderia ter falhado por não estar esclarecida sobre isso?
Sanches: É, por não ter sido esclarecida. Mas isso não a exime de erro. Quem presta contas é ela.
Agência Brasil: Se ela sofre processo de impeachment por pedaladas, vários governadores poderiam também sofrer o mesmo processo? Como o senhor vê isso?
Sanches: Muitos prefeitos já foram processados por crimes de responsabilidade, perderam o mandato, alguns até cumpriram pena por crimes comuns ou de responsabilidade. E eu não duvido que alguns governadores talvez estejam na mesma situação. Mas isso não significa que ela possa fazer só porque alguns fizeram e não foram punidos.
Agência Brasil: Setores da sociedade, movimentos sociais e parte do governo encaram esse processo como um golpe. O senhor vê esse processo como um golpe?
Sanches: De forma alguma. A Constituição é que estabelece o processo de impeachment nos crimes de responsabilidade do presidente da República. A denúncia foi oferecida perante a Câmara para que a Câmara autorize a instauração do processo no Senado. O Senado discute se recebe ou se não recebe – e está nessa fase agora – e o Supremo pode atuar em todas as questões processuais como atuou no caso Collor. Se houver violação ao direito de defesa da acusada, o Supremo pode ser provocado para dirimir o conflito. Mas o Supremo não pode entrar no mérito, examinar se houve ou se não houve o apontado crime de responsabilidade. Mas o que foi apontado na inicial é, em tese, crime de responsabilidade.
Agência Brasil: Há alguma semelhança entre o processo de impeachment de Collor, que o senhor presidiu, e o de Dilma? E quais são as diferenças?
Sanches: A única semelhança para os dois são os processos de impeachment. Mas para aí. Tudo o mais é diferente. Collor estava sem apoio na Câmara e no Senado. A autorização da Câmara, o processamento no Senado e a condenação ocorreram com certa facilidade porque a grande maioria da Câmara e do Senado, acima de dois terços, era favorável ao impeachment. No caso de Dilma é diferente. Ela tem ainda o apoio do partido, o PT, de alguns partidos aliados e tem ainda apoio dos movimentos sindicais, sociais e de algumas manifestações contra o impeachment. E não são tão pequenos.
Agência Brasil: A divisão na sociedade dificulta ou ajuda o processo?
Sanches: Os senadores, como os parlamentares de um modo geral, são muito influenciados pela opinião pública. No caso do Collor, foi maciça. E não havia demonstrações de apoio ao presidente. Agora, há essa diferença. É verdade que, a favor do impeachment, as manifestações são muito mais expressivas e são espontâneas. Ao passo que, as que são contra o impeachment, são evidentemente organizadas ou pelos partidos ou pela CUT (Central Única dos Trabalhadores) ou pelos sindicatos ou pelos movimentos sociais organizados. E o número é bem menor. No caso Collor, havia também o seguinte: o que se imputava a ele era o crime de corrupção passiva, que não era de competência do Senado. Mas havia também falta de decoro no exercício do mandato porque ele recebia dinheiro de origem inexplicada, mas não se provou no Supremo, no processo criminal comum, que ele praticava algum ato errado a troco do dinheiro. Sem isso, não há corrupção passiva. É a mesma coisa de você dar dinheiro para um guarda para não ser multado. Ele aceita. Você praticou corrupção ativa e, ele [policial], corrupção passiva. Faltava provar no caso criminal, lá no Supremo, que o Collor recebeu, praticou ou deixou de praticar algum ato a favor da parte que libera o dinheiro. Então, ficou apenas falta de decoro no exercício do mandato. No Senado, ele foi condenado e, no Supremo, ele foi absolvido porque os fatos são diferentes. Os fatos são os mesmos, mas o tratamento da lei é outro. Uma coisa é o foro político. E outra coisa é o foro jurídico.
Agência Brasil: No Supremo, Collor foi absolvido?
Sanches: Por 5 a 3. Três [ministros] acharam que não precisava haver prova de que ele tinha praticado algum ato ou deixado de praticar algum ato.
Agência Brasil: Collor renunciou, mas a presidenta Dilma sinaliza que não deve fazer o mesmo.
Sanches: Pelo que entendi, ela disse que não vai renunciar. Se ela não vai renunciar, a decisão vai ser se decreta ou não o impeachment. E essa deliberação é só dos senadores.
Agência Brasil: Esse processo de impeachment é mais político que jurídico?
Sanches: Tem fundamentos jurídicos na denúncia. Os fatos que são expostos ali, em tese, caracterizam crime de responsabilidade. Em tese significa que não estou dizendo, no caso concreto, se deve ser condenado. Isso é outra coisa. Aquilo que está sendo atribuído a ela realmente corresponde ao crime de responsabilidade, que é a falta de decoro no exercício do mandato. O Senado é que vai dizer se o crime realmente ocorreu, se ficou provado ou se não ficou provado. E isso ele vai dizer como? Com as convicções que um político tem. O juiz tem que fundamentar sua decisão, não é nula sua decisão. Lá [no Senado] não precisa nem fundamentar, basta dizer sim ou não, contra o impeachment ou a favor do impeachment. É verdade que todos querem fundamentar, mas se você for verificar na essência, não é com fundamentações jurídicas, mas é com fundamentação política. Por exemplo: 'o governo está muito mal, o povo está sofrendo muito e acho que não deve continuar o governo'. Esse não é o fundamento jurídico, esse é o fundamento político. E por que a Constituição decidiu botar [o processo de impeachment] na mão de um político? Porque o presidente da República é escolhido pelo povo, a Câmara dos Deputados é escolhida pelo povo e os senadores são escolhidos pelo povo. Não é o tribunal judiciário que vai tirar o mandato dela, a não ser que ela pratique um crime comum. Mas, ainda assim, ela só poderia ser processada por um crime comum depois de terminado o mandato. Até lá, não correria o prazo de prescrição. E foi o que aconteceu com o Collor também. O processo criminal dele começou depois que deixou o Senado.
Agência Brasil: Há uma proposta sendo discutida para que sejam realizadas novas eleições. Como o senhor vê essa proposta?
Sanches: Acho que, sem emenda constitucional, não será possível. E a emenda constitucional exige três quintos de votos na Câmara e no Senado. Duas vezes. Isto é, duas vezes em cada Casa e três quintos de todos os deputados e senadores. O que não é fácil.
Agência Brasil: E um plebiscito sobre novas eleições poderia resolver isso?
Sanches: Novas eleições precisam de emenda constitucional. E já vi alguns juristas se manifestando dizendo que só se aplicaria a partir do próximo ano porque a Constituição diz que as normas eleitorais são baixadas para o ano subsequente. Não vale para o ano em exercício.
Agência Brasil: Novas eleições ajudariam o país neste momento?
Sanches: Acho que iria retardar muito para o país. Bem ou mal, o povo quer, a maioria [do povo]. A Câmara autorizou [o processo de impeachment]. Senado, pelo que ouvi, também quer. O Supremo não pode mexer nisso. Só se houver violação ao direito de defesa da acusada, só se houver essas questões. No mérito, [o Supremo] não pode interferir. O quadro não está bom para a presidente. E quanto mais demorar, pior. No caso do Collor, [o processo demorou] dois meses na Câmara e dois meses no Senado. Eu só passei a funcionar como presidente do processo quando o Senado já tinha recebido a denúncia. A partir daí é que o presidente é afastado do cargo.
Agência Brasil: Qual foi o papel do Supremo no processo de impeachment de Collor? E qual será agora?
Sanches: É exatamente a mesma coisa. Houve vários mandados de segurança contra meus atos, mas praticados como presidente do processo. Só questões processuais. E o Supremo negou todos. Negou por maioria, não foi por unanimidade. E a votação que foi mais dividida foi de 6 a 4. Foi quando o Collor renunciou ao mandato e a dúvida é se podia prosseguir no processo para aplicar a pena de interdição no exercício da função pública. E o Senado entendeu, e eu também acho isso, que aquela segunda pena tem outra finalidade. Uma coisa é para perder o mandato, que está em exercício. Outra coisa é ficar impedido de exercer qualquer função pública, até por concurso público, durante oito anos. Isto é uma lição para tirar o mandato e dizer que ele não pode ser candidato a nada em oito anos. Se não fosse assim, o que aconteceria? Se, por exemplo, o presidente sofresse impeachment alguns meses ou dias antes do final do mandato. Ele renunciaria e, dias depois, ele se candidataria de novo. Não teria sentido. Isso mostra que é uma pena que tem outra finalidade, mas, mesmo assim, a questão foi dividida lá no Supremo, 6 a 4, de maneira que temos pelo menos esses precedentes.
Agência Brasil: Atualmente há uma discussão sobre em que momento o presidente do Supremo, Ricardo Lewandowski, deve assumir o processo. Existe um rito para isso?
Sanches: Eu assumi assim que a denúncia foi recebida e antes da produção de provas. A colheita das provas foi feita por uma comissão especial e, das decisões da comissão, cabia recurso para mim. Eu mantinha ou modificava conforme eu estivesse convencido sobre o ponto de vista técnico, processual.
Agência Brasil: Isso é o ideal? O melhor hoje seria ocorrer dessa forma como foi na sua época?
Sanches: É o que a Constituição quer. É a própria natureza do impeachment. Se fosse simplesmente para aplicar o direito previsto, seria nos tribunais. No Judiciário. Mas por que é lá [no Senado]? Porque lá se julga o governo, não a pessoa. Não é a pessoa que será julgada, é o governo. A imputação é contra a pessoa física, mas, na verdade, o que vai se julgar é tudo o que aconteceu.
Agência Brasil: Temos uma democracia ainda recente no Brasil, mas este já é o segundo processo de impeachment de um presidente da República. Isso causa algum prejuízo para a democracia no país ou traz insegurança para os presidentes? O senhor vê problemas nesse processo?
Sanches: A Constituição de 1988 previu o impeachment porque é uma das saídas para a hipótese em que o povo não quer mais que o presidente continue governando. Não existe o chamado recall nem plebiscito para deliberar se deve sair ou não. E o regime é presidencialista, não é parlamentarista. Em um regime parlamentarista, se o povo quiser que ele saia, o primeiro-ministro, que foi escolhido pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado, ele submete um voto de confiança a esses órgãos. Se a decisão for desfavorável, ele já dissolve o Parlamento e convoca eleições gerais. Isso em um sistema parlamentarista. O nosso é presidencialista. E se previu essa única saída que é a do impeachment. Houve pedido no primeiro mandato presidencial após a Constituição de 1988, que foi a de Collor. Depois houve pedido de impeachment contra Sarney, Itamar Franco e Fernando Henrique. Então, vai continuar sendo moda. O brasileiro vai achar que sempre vai pedir o impeachment. Mas por que malograram os pedidos contra Sarney, Fernando Henrique e Itamar? Porque os políticos entenderam que não era o caso. E eles é que podem achar. O que é preciso entender é que é preciso dois terços dos votos. Então, por exemplo, na Câmara, tem que ser 342 votos no mínimo. E no Senado também dois terços. A absolvição pode ser por maioria absoluta ou maioria relativa, a maioria que estiver lá presente. Agora, se ela tem ou não apoio político suficiente para impedir que ela sofra a condenação, isso só o tempo dirá.
Agência Brasil: O processo na Câmara foi conduzido pelo deputado Eduardo Cunha, contra quem há várias investigações, até por corrupção. Ele não foi punido, mas é investigado. Também há vários deputados que votaram no processo e que são investigados por corrupção e outros crimes. O senhor vê problema nisso?
Sanches: Os problemas são do ponto de vista ético. E não deveria acontecer isso. Mas acontece que o presidente Cunha só pode ser afastado pela Câmara, e não pelo Supremo – o Supremo só poderia afastá-lo do cargo em caso de processo criminal não no processo de impeachment. Como a Câmara, até agora, não se dispôs e não conseguiu concluir nem na Comissão de Ética, não há nada contra ele. Está muito demorado o processo contra ele na Câmara. Naturalmente porque ele tem muita força lá dentro senão não seria assim. Foro político é assim: tem força ou não tem força.
Agência Brasil: Há também questionamentos prevendo a nulidade do processo na Câmara alegando que os deputados que votaram no processo não deram justificativas plausíveis ou referentes ao próprio processo durante a votação. Houve vários deles que citaram a mãe, Deus, a família para justificar seus votos, sem fazer menção ao processo. Esse questionamento é válido?
Sanches: Acho que não. Se ele pode dizer sim ou não à pergunta se ela deve ser condenada, por que ele não pode dizer sim por causa disso ou assim e assim? O motivo dele é irrelevante. A conclusão é que é [importante]. Pode acontecer de alguém falar que o crime não está caracterizado, mas que ela deve sair porque não tem mais condições de governar. É um voto político. Mas o que vimos na Câmara foi uma coisa dolorosa. Uma vergonha para o país. Não digo todos, mas há coisas ali ridículas. A repercussão internacional foi péssima. Inclusive aquela [Raquel Muniz] que falou que 'se querem saber o que é probidade administrativa, conheçam a prefeitura de Montes Claros'. E não falou que o marido dela era o prefeito que foi preso no dia seguinte por corrupção. E depois ficamos sabendo também que ela já foi condenada.
Agência Brasil: No início do ano passado, o senhor foi convidado a fazer um parecer sobre o impeachment da presidenta Dilma, mas se recusou. Por que?
Sanches: Naquela ocasião, o primeiro mandato [da presidente] já tinha terminado. Achei duvidoso que se pudesse pedir o impeachment com base em atos praticados no primeiro mandato. Quando se fez aditamento na denúncia para fatos ocorridos em 2016, achei viável. Mas, então, não fui mais procurado, naturalmente porque já conheciam minha opinião.
Agência Brasil: Se Dilma Rousseff for impedida, quais seriam as consequências para ela?
Sanches: Se ela sofrer as duas penas, ela terá a interdição do exercício de função pública por oito anos. Ela não poderá ser candidata a nada em cargo público. Nem por concurso. É uma pena até mais brava que a outra, a perda do mandato. O que é importante é que seja cumprida a Constituição, a lei do impeachment e que não seja prejudicada a defesa da acusada. Que ela tenha ampla defesa e que ela tenha acesso ao Supremo nas questões meramente processuais, não quanto ao mérito, que é de competência do Senado. Temos que aguardar. E espero que a solução seja boa para o país e que o país se reencontre porque está perdido.
Elaine Patricia Cruz – Repórter da Agência Brasil
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